30.4.10

onde?


Na cozinha, um gole d´água. Voltei. Na minha frente, um caderno que não usei no ano passado. As linhas existem para serem preenchidas. Um caderno é um corpo, suas linhas são as veias. Vazias, o sangue não corre. É preciso fazer viver. Recuso as teclas, vamos de caneta em punho, vamos lá:




(decepcionante.)

9.4.10

Você, 01:48 - 02:04


Começando a uma e quarenta e oito de uma madrugada de segunda para terça, você resolve escrever o que te der na telha sem pensar em nada mais além da tela de um computador portátil que você apoia numa espécie de junção de almofada com bandeja, um perfeito artefato do século XXI que a sua mãe trouxe de lembrança para você de uma viagem que ela fez para alguma pousada na região serrana. Agora já são uma e cinquenta e quando o programa de edição de textos do computador sublinha a palavra “cinqüenta” sem que você tenha demandado algum controle sobre isso, você percebe que a palavra cinquenta já contou em um tempo passado com o que se chamava trema, um sinal de acentuação que ressaltava a pronúncia do fonema da letra “u” na palavra “cinquenta”. E quando você percebe que está falando de palavras e sinais, pergunta-se se não tem nada mais interessante na sua vida para pensar neste momento. “A realidade visual é muito forte”, você pensa, “no momento em que vejo a palavra cinqüenta sublinhada, isso rapta o meu pensamento de tal forma que me faz esquecer do que é feita a minha vida, e se de fato tenho uma vida para além deste momento em que percebo a defasagem entre o português do programa de computador e o atual normativo segundo as gramáticas oficiais. Isso tudo porque, diferente da minha vida, neste momento eu VEJO a palavra cinquenta e seu sublinhado.” Você então, agora a uma e cinquenta e sete da madrugada, envereda por um pensamento que confronta tudo que se pode ver contra o que não se pode ver e vamos tentar dispor em ordem o seu pensamento: 1. o que estou dizendo?, tudo pode ser visto, a partir de um ponto de vista e a partir de uma abordagem, certo? Por exemplo, peguemos algo como o amor, o tão batido amor que quase todos concordam que não seja matéria visível; se um casal anda pela rua, o homem com o braço por cima do ombro da mulher, eles andam em minha direção, está chovendo e o lixo da rua escorre pelos bueiros, eu me protejo com nada mais do que o jornal do dia, e num momento de desatenção, a rua é estreita e nela não cabem três corpos horizontalmente, esbarro no casal, e então o homem vira pra mim e diz: Você sabe o que é isto?, isto é o amor. E então ele beija a mulher e eu fico olhando os dois trocarem saliva enquanto gotas d´água rolam por suas faces. Por acaso eu poderia dizer que aquilo não é amor? Que argumentos eu teria para dizer que aquilo não é amor? O que é amor? Já são duas e quatro da madruga e você não sabe. O amor é um assunto tão cansativo que você sente sono. Você até para um tempinho de escrever para reduzir a luminosidade da tela do computador para não cansar tão rápido de ler as próprias linhas.