31.7.07

Desembestado

Já no auge do pileque, Argemiro resolveu voltar pra casa. Cambaleante, afundou o chapéu na cabeça e despediu-se de todos, aliviado por dividir a tristeza com os compadres e receber os cumprimentos e condolências. Recusou companhia e tomou o rumo do sítio, num andar trôpego pela noite fria.

Fazia uma semana que o homem não ganhava as ruas de Vassoural, cidade com mato, igreja e praça. Fazia uma semana desde aquela noite em que a calmaria da cidade fora violentada por um automóvel desembestado, vitimando Lurdinha. Toda a Vassoural padeceu da morte de sua mais querida doceira. Mas o viúvo nem pôde reparar, já que passara os últimos dias hibernando no sítio.

Argemiro, corpo maciço de ajudante de pedreiro, não chegava a cair pelo caminho, mas as pernas estavam trêmulas e a cabeça vacilante. O peito estufava e as costas arqueavam. Falava no nome de Lurdinha e, com os olhos duros, segurava o choro de homem.

Não faltava muito chão quando o cacarejar das galinhas e o guincho dos porcos fizeram-se ouvir. O viúvo apressou o passo bêbado, tornando-o quase resoluto, e parou na cerca da chácara vizinha de seu sítio. Rosângela, recém-acordada, já passava pela varanda, em direção ao improvisado galinheiro e o pequeno chiqueiro, os quais Argemiro ajudara a montar. A irmã de Lurdinha atuava no fornecimento de carnes, e dali também tirava comida para sua mesa. Seus clientes eram apenas alguns poucos mercadinhos de Vassoural, portanto, algumas galinhas e uns tantos porcos já eram suficientes. Boi era bicho grande para o espaço da chácara.

Algum gambá ou aprendiz de lobo qualquer devia ter passado perto do galinheiro, assustando as galináceas, que por sua vez, acordaram os porcos. Argemiro observou Rosângela averiguar o jardim e não encontrar ameaça alguma aos seus sustentos. O corpo da mulher não era esguio, mas a idade também não era menos de trinta. Nos afinais, aquelas curvas recheando a camisola clara faziam um belo contraste com a escuridão. Argemiro reparou o quanto Rosângela lembrava Lurdinha.

Voltando à varanda, a mulher avistou Argemiro parado, apoiado na cerca. Rosângela então se aproximou, de braços cruzados, e notou o rosto sofrido de seu cunhado.

- Argemiro, homem! Não fique aí todo apalermado nesse frio. Tá voltando do bar, né? E o Expedito, cadê?

- Tá no bar ainda.

- Ih, já vi que ele volta tarde hoje. Entra aí, vou pegar um copo d´água pra você.

Rosângela entrou na casa e Argemiro seguiu aquela voz tão semelhante à de Lurdinha. O sofá lhe pareceu um bom lugar pra cair, e foi isso que fez. Quando Rosângela retornou com a água, Argemiro levantou o corpo de lado, num esforço para se sentar direito. O homem bebeu o copo todo com fervor. Pediu mais um. A mulher trouxe uma garrafa de água e lhe serviu mais um copo, antes de sentar na poltrona ao lado do sofá. De cabeça baixa, Argemiro foi bebendo aos poucos.

- Tô com saudade da sua irmã.

- Eu sei Argemiro, eu também tô. Não passa dia sem eu chorar de falta dela. Queria ela aqui.

- Eu quero sua irmã de volta.

- Eu também, eu também Argemiro...

Rosângela derramou algumas lágrimas e Argemiro reparou como ela chorava um choro parecido com o da sua falecida esposa.

- Não é justo eu ficar sem minha mulher!

- Não! E não é justo eu não ter mais minha irmã!

Argemiro subiu o olhar levemente e então reparou como as coxas de Rosângela lembravam muito as coxas de Lurdinha. Levantou-se e foi meio bambo até a mulher, que também se pôs de pé e lhe deu um abraço.

- Quanta dor, Argemiro, quanta dor!

Os dois envolveram seus braços nas costas do outro, segurando-se com força.

- É muito sofrimento Argemiro!

Argemiro desceu um pouco os braços.

- É, eu não agüento!

Rosângela sentiu o apertão em suas nádegas e a fungada no cangote. Empurrou o homem, gritando de susto.

- Que isso Argemiro! Que qui é isso, homem?!

- Eu não agüento, porra! Tu é igual à Lurdinha!

Argemiro correu pra cima de Rosângela, de olho nos peitinhos tão semelhantes aos de Lurdinha. A mulher, numa reação impetuosa, pegou o copo e deu com ele na cabeça do homem. Argemiro encontrou o chão e Rosângela já o ameaçava com a garrafa.

- Sai daqui seu safado! Nojento! Que qui é isso de me apalpar?! Vou contar tudo pro Expedito! Sai daqui, danado! Não respeita nem a memória da minha irmã, não?! Vai embora!Vai!

Cabeça latejando e o álcool na veia, Argemiro levantou devagar, estranhando aquelas duas mulheres ondulantes que balançavam garrafas apontadas para ele.

- Vão tomar nos seus cus, suas puta!

Argemiro bateu a porta da casa com tanta força que se desequilibrou e foi caindo até o jardim em meio a cambalhotas. Rosângela trancou a porta e sumiu pra dentro do lar. Os porcos guincha vam e as galinhas cacarejavam. Argemiro ergueu seu corpo com cuidado, batendo na roupa pra tirar a grama do jardim que ficara grudada. Sentindo-se confiante no equilíbrio, chegou perto do galinheiro e do chiqueiro. As galinhas se afastaram com medo e os porcos o olhavam curiosos. Aqueles ruídos entravam ferozmente pelo ouvido de Argemiro, então ele catou umas folhas de bananeira e distribuiu-as entre os porcos, que logo se acalmaram. Recostou na parede do chiqueiro olhando os porcos comerem preguiçosamente e teve a sensação de que algo havia acontecido, mas não sabia o que, não se lembrava muito bem das coisas. Sua cabeça doía e o corpo ainda pulsava. Os olhos, fixados num porco comendo. Se bem que esse tinha tetas, era uma porca. A porca parece que se cansou de ser olhada pelo homem e, trazendo a folha de bananeira pela boca, virou-se de costas. Argemiro continuou olhando-a, agora encarando sua traseira. Foi aprofundando o olhar e, de repente, algo lembrou-lhe Lurdinha.

- Lurdinha. Lurdinha...

O corpo estremeceu todo. Uma quentura o invadiu. Lurdinha o chamou.

Argemiro tirou o cinto da fivela e deixou as calças caírem. Tirou-as pelas pernas e em seguida se foi a camisa. Perna por perna foram passadas por sobre a mureta. De sapatos e cueca, entrou na baia da porca.

- Ô Lurdinha, coisa linda, olha quem tá aqui, olha quem veio te fazer um carinho, Lurdinha...

Acariciava a porca, falando com voz mansa e terna. Ela se assustara com a entrada de Argemiro, mas o fino trato a convencera de que podia continuar comendo sua folha de bananeira sem maiores preocupações. Argemiro posicionara-se pela retaguarda da porca e já abaixava a cueca, quando ouviu a voz:

- Argemiro! Que qui tu tá fazendo aí, cumpadre?!

Era Expedito, o marido de Rosângela, que chegara da bebedeira no bar. Argemiro congelou com o pau na mão.

- Anda rapaz, que qui é isso?! Peladão no meu chiqueiro, que merda é essa, Argemiro?! Tá querendo fuder minhas porca?! Recolhe essa porra, seu safado!

Argemiro deu por si, vestiu a cueca e pulou a mureta de supetão, querendo fugir o mais rápido possível. Mas no que Expedito botou o pé na frente, Argemiro caiu de boca no gramado do jardim, deixando alguns dentes de enfeite. Expedito o pegou pelo pescoço enquanto torcia um braço com a outra mão.

- Danado da porra! Se quer fuder umas porca, que crie as suas, não venha se aproveitar das dos outro! Isso aí é o meu sustento, seu vigarista!

- Ela que me seduziu!

- Ah! Vai pro caralho, seu doente!

- Ela que me seduziu, Expedito!

Era tudo o que o bêbado Argemiro conseguia falar. Rosângela, ouvindo toda aquela falação, voltou ao quintal e se espantou com Argemiro ainda lá, só de cueca e sapatos, e engalfinhado com seu marido.

- Expedito! Que qui tá acontecendo, meu Deus?

- Esse danado tava tentando se aproveitar das nossas porca, mulher! Peguei ele só de cueca dentro do chiqueiro! É um safado mesmo!

- Meu santinho, Deus do céu! Que qui é isso! Esse homem tá louco!

- Ela que me seduziu, porra!

- Cala a boca, Argemiro!

Argemiro tentava se desvencilhar, mas Expedito o sacudiu, fazendo sua cabeça bater no chão e Rosângela continuou:

- Esse homem endoidou! Tentou se assanhar pra cima de mim também, Expedito. Veio pegar em mim e ficou falando besteira! Tive que expulsar ele da casa!

- Comé qui é? Que qui ele fez?!

- Ela que me seduziu! — repetiu Argemiro já sem saber ao que estava respondendo.

- Comé qui é? Que porra é essa, Rosângela?!

Nervoso, Expedito soltou Argemiro e foi andando até pegar no braço de Rosângela, que tremeu de medo.

- É mentira dele, Expedito! Ele que veio de desaforo, querendo me agarrar! Eu num fiz nada!

- Olha lá hein mulher... Você num vem de chifre pra cima de mim não hein... Se eu te pego, não te deixo viva!

Com os olhos vermelhos, não se sabe se mais de raiva ou de cachaça, o marido apertava o braço da mulher.

- Pára com isso, homem! Tá me machucando! Já disse que é mentira dele, que eu não fiz nada, caceta!

- Olha lá hein mulher, olha lá, vou confiar, mas tô te avisando hein...

- Ela que me seduziu, caralho!!! — esgoelou-se Argemiro, repetindo seu mantra atordoado.

Numa corrida, Expedito chegou logo com um chute nas costelas do homem estirado no quintal.

- Cala a boca, filho duma égua! Vô te matar, seu safado vagabundo! Ô Rosângela, pega a arma lá dentro, pega! Vô dar uns pipoco nesse vigarista aqui pra ele aprender!

O chute foi de tirar o ar por um momento, mas fez Argemiro acordar de seu transe alcoólico. Rosângela entrou em casa e Argemiro ficou aterrorizado. Esperou Expedito se aproximar de novo e então, ainda no chão, esticou-se todo numa rasteira que fez Expedito tombar. Num pinote, correu em direção à rua, ultrapassando a cerca da chácara. Expedito foi atrás.

- Volta aqui seu danado! Tu num foge não, vô te meter as bala toda!

Argemiro, de cuecas e sapatos, fugia de Expedito, mas nem percebeu o automóvel desembestado que vinha pela pista. Desse não escapou. Pegou em cheio.